- Por MATTHEW STOVER e ROBERT E. VARDEMAN
À borda de um penhasco sem nome, ele põe-se de pé: uma estátua de mármore travertino, pálida como as nuvens do céu. Ele vê que não há cores na vida, nem nos cortes escarlates das suas tatuagens, nem nos retalhos apodrecidos de seus pulsos, onde as correntes rasgaram sua carne. Seus olhos são pretos como a tempestade agitada que marca o Egeu abaixo, que termina com a espuma que se aferventa nas rochas acidentadas. Cinzas, somente cinzas, desespero, e o chicotear da chuva infernal: essas são suas recompensas por dez anos de serviço aos deuses. Cinzas e putrefação e decadência, uma morte solitária e fria.
Seu único sonhos agora é o esquecimento...
Ele já foi chamado de Fantasma de Esparta. Ele já foi chamado de Punho de Ares e de Campeão de Atena. Ele foi chamado de guerreiro. Um assassino. Um monstro. Ele foi todas essas coisas. E nenhuma delas.
Seu nome é Kratos, e ele sabe quem são os verdadeiros monstros. Seus braços pendem, suas vastas linhas de músculos fortes e entrelaçados são inúteis agora. Suas mãos trazem calos endurecidos não somente pela espada e pela lança espartanas, mas pelas Lâminas do Caos, pelo Tridente de Poseidon e mesmo pelo lendário Relâmpago de Zeus. Essas mãos tiraram incontáveis vidas, mas agora eles não têm armas para empunhar. Essas mãos não mais se fechariam ou cerrariam em punhos. Tudo o que podem sentir é o gotejar de sangue e pus de seus pulsos dilacerados.
Seus punhos e antebraços são os verdadeiros símbolos de seu serviço aos deuses. A maltrapilha e descascada carne tremula ao vento cruel, tornando-se enegrecida de podridão; até os ossos padecem pelas cicatrizes deixadas pelas correntes que uma vez fundiram-se ali: as correntes das Lâminas do Caos. Essas amarras já não existiam mais, arrancadas pelo mesmo deus que se impôs sobre ele. Aquelas correntes uniam as lâminas a ele, e ele às lâminas; aquelas amarras eram os vínculos que o algemavam a serviço dos deuses. Mas o trabalho havia acabado. As correntes se foram, e as lâminas com elas.
Agora ele não tinha nada. Não era nada. De tudo o que não o abandonara, ele se virou. Sem amigos - ele é temido e odiado pelo mundo conhecido, e nenhuma criatura viva pode olhá-lo com amor ou mesmo alguma fagulha de afeição. Sem inimigos - ele não tinha mais nenhum vivo para matar. Sem família... E esse, mesmo agora, é um lugar no seu coração que ele não se atreve a espiar.
E finalmente, o último refúgio dos perdidos e solitários, os deuses...
Os deuses fizeram um escárnio de sua vida. Tomaram-no, moldaram-no, transformaram-no em um homem que não suportava mais ser. Agora, no final, ele não consegue nem se enfurecer.
"Os deuses do Olimpo me abandonaram".
Ele pisa nos últimos centímetros do penhasco, suas sandálias raspam no cascalho da beirada quebradiça. Trezentos metros abaixo, trapos sujos de nuvens giravam e trançavam uma malha de névoa entre ele e as pedras pontiagudas banhadas pelo mar Egeu. Uma malha? Ele sacode a cabeça. Uma malha? Antes uma mortalha.
Ele fez mais do que qualquer mortal poderia ter feito. Ele completou proezas que nem mesmo os deuses poderiam igualar. Mas nada apagava sua dor. O passado do que ele não pudera escapar trazia a agonia e a loucura como sues únicos companheiros.
"Agora não há esperança".
Não há esperança neste mundo - mas no próximo, dentro das bordas do poderoso Estige, que faz fronteira com o Hades, onde corre o rio Lete. Um esboço da água negra que, dizem apaga a memória de uma existência que deixou uma sombra para trás, e o espírito vagueia para sempre, sem nome, sem casa... Sem passado. Esse sonho o impulsiona a tomar um final e fatal passo, que o empurra para o meio das nuvens que despedaçam-se em volta dele, enquanto ele cai. As rochas carcomidas pelo mar se materializam, ganhando solidez e tamanho, e correndo para esmagar sua vida.
O impacto engole tudo o que ele foi, tudo o que ele é, tudo o que ele fez e tudo o que foi feito a ele, em uma explosão estilhaçada de noite...
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A deusa Atena se postou em armadura completa defronte a seu espelho de bronze polido, encaixou uma flecha em seu arco e retesou a corda vagarosamente. Ela olhou todos seus movimentos no espelho, para verificar sua postura. Atena ergueu seu cotovelo direito levemente. Qualquer desvio no ângulo faria a flecha ser disparada erroneamente. Ela buscava perfeição em todas as coisas, como convinha à deusa guerreira. Ela segurou a corda e tensionou-a, sentindo os músculos nos seus braços e ombros se distenderem. A sensação perpassou e a tornou consciente não somente dela mesma, mas tudo o que a circundava. Uma meia-volta, observada no espelho, uma pequena correção em sua postura, e ela mirou a flecha através de sua câmara em uma tapeçaria enorme que mostrava a Queda de Troia. A flecha deslizou dos seus dedos e voou certeira para afundar-se na figura entrelaçada de Páris.
"Que herói cheio de falhas", meditou ela. Ela não havia feito uma escolha tão pobre. Ela arriscou muito porque o destino do Olimpo suspendeu-se de seu equilíbrio, quando seu irmão Ares ficou fora de controle. Será que Kratos experienciou um momento de hesitação pouco antes de a flecha voar de seu arco? Dúvida? Segurança? Atipicamente, ela sentiu uma estocada de pânico. Será que todas as suas maquinações serviram para nada, arrancando os serviços de Kratos das mãos de Ares para si, em um ardil engenhoso?
Um pequeno sopro de ar fez girar vertiginosamente, outra flecha ajustada ao arco, e então enrijeceu-se até que o arco dourado gemesse com a tensão. Ela ponderou suas ações, depois lentamente relaxou sua tração na corda, a flecha dispersou-se Espreguiçando-se seminu em seu sofá, de uma nuvem de vinho tinto, sem a menor expressão de vergonha, estava um jovem de beleza atordoante. Seu sorriso charmoso e malicioso não titubeava por ter uma flecha apontada à sua testa.
- Ótimo vê-la - ele disse. - Celebrando a sua vitória, não é? Você sabe o que faz esta ocasião realmente especial? Derramar sua virgindade perpétua. Não pareça tão solene. Não seja tão solene. Vamos explorar esse território, sem travas. Sou um explorador versado e posso lhe mostrar o caminho por rumos não familiares.
- Hermes - ela disse entre os dentes. - Não o adverti sobre me espionar em minha câmara?
- Estou certo que sim - o Mensageiro dos Deuses disse indolentemente. Ele esfregou suas costas despidas no sofá, remexendo-se sinuosamente, com prazer.
- Ah, maravilhoso. Estava com uma coceira. Na verdade, querida irmã, há uma outra coceira, uma com que você pode me ajudar, oo que é justo, já que você é sua inspiração.
- Sou? - o rosto de Atena poderia ser esculpido em mármore. - Devo coçá-lo com minha espada?
O arco em seu punho desapareceu, substituído por uma espada afiada. Hermes deixou seu peso recair sobre o sofá. Ele entrelaçou seus dedos por trás de sua cabeça e falou com emoção para os céus do Olimpo:
- Para sempre fitando aquilo que não posso tocar - suspirou. - Tais cruéis destinos deveriam ser reservados somente para os mortais.
Atena aprendeu com séculos de experiência que Hermes era tão intoxicado com seu próprio charme que, quando começava a flertar, a única maneira de evitá-lo era mudar o rumo da conversa. Ela usou sua espada para apontar para as sandálias dele.
- Você está usando suas asas. Esta é uma mensagem oficial?
- Oficial? Ah, não, não, Zeus está por aí, fazendo... algo - ele sorriu maliciosamente. - Muito provavelmente alguém. Outra garota mortal, certamente. Só as Moiras sabem. Realmente, eu não posso adivinhar o que ele vê nas mulheres mortais, quando qualquer deus normal sacrificaria uma parte privada imortal, ou duas, pela chance de passar pela cinta de Hera.
- A mensagem - disse Atena. - Sua desculpa para invadir minha câmara?
- Ah, existe uma mensagem.
Ele materializou seu caduceu e o acenou para ela.
- Mesmo. Vê? Eu tenho a varinha.
- Sua beleza lhe empresta a impressão de charme. Seu comportamento a dissipa.
- Oh, eu suponho que isso tenha sido um chiste. Foi, não foi? Eu pergunto, cara virgem da guerra, pois de outra forma não poderia decifrar.
- Então me permita responder com um questionamento meu. Essa mensagem que traz é de tanta importância que eu não deveria matá-lo por me agravar?
- Vá, por favor. A palavra de nosso pai proíbe qualquer deus de assassinar outro... - sua voz se arrastou como se achasse algo inteiramente desconfortável no olhar frio e cinzento da deusa.
- Atena, minha cara irmã, você sabe, sou perfeitamente inofensivo, mesmo.
- Isso é o que venho me dizendo. Até agora.
- Só estava tentando me divertir um pouco. Um montante bem pequenino. Uma provocaçãozinha com minha irmã favorita. Anime-se, que tal? Distraia-se de... bem, você sabe.
- Sim, bem sei. E você não deveria esquecer tampouco.
Ela vislumbrou atrás de Hermes uma penteadeira, onde jazia um ornamento de ouro, encrustado com pedras preciosas. Mais um badulaque feito por um artesão ambicioso da cidade como uma oferenda de sacrifício a ela. Era benfeito, para o trabalho de um mortal. Ela achava que poderia até responder às preces dele, se se incomodasse de lembrar qual era seu nome. Sua preocupação com Ares a roubou dos seus pensamentos para com os mortais que confiavam nela, mesmo em suas mortes. Isso deveria mudar logo, para reparar mais do que construções desintegradas.
- E, bem, eu realmente peço desculpas por espionar. De todas as deusas do Olimpo, você é a verdadeiramente mais bela. Sua postura era elegante - não, perfeita, com o arco curvado e a corda tensa. Era uma visão de se contemplar. Qualquer adversário estremeceria, assim como qualquer aliado se mobilizaria à sua causa.
Hermes ergueu-se do sofá, alongando seus músculos de modo calculado, enfatizando seu físico esbelto e jovial.
- Mas deve admitir: entre os deuses, eu sou o mais bonito.
- Se você fosse metade do homem que pensa ser, você poderia, deveras, exceder o sol em brilho.
- Vê? Nenhum se compara a mim.
- Gostaria de ouvi-lo falar assim na frente de Apolo.
Hermes balançou a cabeça arrogantemente.
- Ah, claro, ele é bonito o suficiente, mas é um tanto entediante!
- É melhor que as próximas palavras de seus lábios digam respeito a sua mensagem.
Ela se inclinou e curucou Hermes levemente, no peito, com a ponta de sua espada.
- Você viu recentemente, acredito, as consequências de me deixar irritada.
O Mensageiro dos Deuses olhou para baixo, para a lâmina contra as suas costelas, e depois de volta para os olhos cinzentos e resolutos da Deusa da Guerra. Ele ergueu-se, adequou-se, ajustando sua clâmide com exagerada dignidade, e disse uma voz de clarim:
- É seu mortal de estimação.
- Kratos? - ela franziu a testa.
Zeus havia dito que ele mesmo cuidaria de Kratos até depois do memorial.
- O que há com ele?
- Bem, achei que gostaria de saber, em vista de toda a assistência que lhe deu e do zelo que ocasionalmente sente por ele...
- Hermes...
Ele se encolheu levemente.
- Sim, sim. Aqui: testemunhe.
Ele ergueu seu caduceu e o apontou. No ar entre eles a imagem de uma montanha se amoldou, alta além da imaginação, e um penhasco, impossivelmente absoluto, impossivelmente alto acima da explosão aquática do Egeu. À margem desse penhasco, Kratos parou e pareceu falar, ainda que não houvesse ninguém para escutar.
- Seu bicho de estimação escolheu um perigoso caminho para trilhar. Esse o levará ao Hades.
Atena sentiu tornar-se pálida.
- Ele quer tirar sua própria vida?
- É o que parece.
- Ele não pode!
Que mortal desobediente! E onde estava Zeus? Não tomando conta de Kratos, obviamente - ou ele disse, agora ela ponderava, que estaria observando de longe o espartano? O que seria algo totalmente diferente. Enquanto sua mente corria, ordenando todas as possibilidades e improbabilidades, o Kratos da imagem inclinou-se para frente e levantou o pé do penhasco para o ar vazio... e caiu. Simplesmente caiu. Sem esforço, sem grito, sem pedido de ajuda. Ele mergulhou de cabeça para a morte nas rochas abaixo, seu rosto era só calmaria.
- Você não previu nada disso? - Hermes sorriu com desdém. - Não é você a suposta Deusa do Prenúncio?
Quando ela voltou seu olhar para ele, ele abafou o riso com uma tosse.
- Da próxima vez que nos encontrarmos - ela disse, baixa e mortalmente. -, veremos qual será meu presságio para você.
- Eu, ahn... estava apenas brincando - ele engoliu em seco. - Só brincando...
- E é por isso que ainda não achei necessário machucá-lo. Ainda.
Sua espada cortou o ar defronte ao nariz de Hermes. A seu crédito, ele não se encolheu. Muito. Ela se recompôs e, com um espasmo de vontade, irrompeu de sua câmara, deixando Hermes boquiaberto atrás dela. Na velocidade do pensamento, Atena desceu do Monte Olimpo para o penhasco. Ela apareceu enquanto Kratos se arremessava pelas nuvens maltrapilhas abaixo.
O Mensageiro estava certo. Contudo, ela não tinha idéia de que esse seria o final da história de Kratos. Como ela pôde ter sido tão cega? Como Zeus pôde deixar isso acontecer? Mais importante: como Kratos pôde ser tão desobediente?
"O Túmulo dos Navios", ela pensou. Foi onde a queda de Kratos realmente aconteceu. Tinha de ser. "O Túmulo dos Navios no mar Egeu..."
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Então é isso pessoal... Logo vou estar postando o "CAPÍTULO 1"... Aguardem...
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